Desemprego. Ainda há uma dura realidade em Portugal. Os relatos de quem faz da vida uma luta pela estabilidade

CNN Portugal


António Silva é desempregado de longa duração após décadas de trabalho no mesmo ramo. Raquel Santos sonha em concretizar uma carreira no mundo das artes antes dos 30 anos. Duas gerações e duas experiências de vida diferentes, que se cruzam na incerteza quanto ao futuro – e que espelham a realidade de tantos outros portugueses. Hoje são conhecidos novos números do desemprego em Portugal. Mas são números, não mostram tudo

António Silva abre o jornal numa página qualquer. As novidades são otimistas, dizem. A taxa de desemprego recuou novamente. E os valores que persistem, esses, parecem difíceis de explicar. As empresas garantem que a oferta abunda; é a mão-de-obra que escasseia, talvez devido à falta de interesse dos trabalhadores e aos subsídios de desemprego estáveis, previsíveis, recebidos mensalmente na conta como um salário sem esforço. Só não arranja emprego quem não quer, ouve-se por aí.

António Silva e Raquel Santos não se conhecem. “Já sou velho”, diz António com um encolher de ombros; Raquel aproxima-se da curva entre os 20 e os 30. António regressa a um quarto vazio todas as noites. Raquel ainda se demora na casa dos pais, que já viram todos os outros filhos partir.

São entrevistados no mesmo dia, mas jamais se cruzam – ele vagueia na rotina que estabeleceu entre a casa e a biblioteca local, e ela prepara-se para mais uma noite de ensaios no grupo de teatro amador a que pertence. Pouco têm em comum e não parece haver motivos para que as suas experiências se articulem – mas inserem-se ambos no mesmo mosaico inconveniente da precariedade em Portugal. Os rostos, preferem não os mostrar; o estigma da condição de desempregado pede recato e desvendam apenas uma mão a segurar um jornal, um pé a pisar o palco, algo que os caracterize, mas não identifique.

Os seus nomes completos e fotografias tipo passe empoeiram-se em currículos arquivados após um olhar de soslaio; as semanas desdobram-se em meses de incerteza e um olhar fixo no saldo bancário, nas moedas que levam no bolso, como se algo fosse mudar em meros instantes por intervenção cósmica. São aqueles que, quando os relatórios anuais são anunciados e as estatísticas celebradas com punhos no ar e otimismo desmerecido, permanecem estagnados no mesmo local onde foram esquecidos.

Hoje, quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicar os dados de desemprego do terceiro trimestre, ninguém espera grandes alterações. A taxa de desemprego não será muito diferente dos 5,7% registados em junho.

Formação para a precariedade. Será mesmo?

“E agora? Onde é que eu vou? O que é que correu mal? O que se segue?” Raquel lança perguntas para ninguém, num desabafo devolvido a si mesma.

A incerteza das palavras contrasta com o semblante sereno e a postura confiante de quem tem um objetivo delineado desde tenra idade. Foi aluna de excelência desde o ensino primário até ao superior, e enquanto os colegas ponderavam as hipóteses de futuro já Raquel tinha enveredado por aquilo que sabia ser a sua paixão suprema – o teatro. Pisou um palco pela primeira vez aos 15 anos, no teatro da escola secundária, e dez anos depois concluiu o mestrado em Artes Cénicas.

O sorriso ao mencionar o curso é amargo – já conhece o estigma associado às artes; as críticas que, mais ou menos diretamente, lá vão dizendo que o investimento na formação artística é uma condição autoimposta de precariedade. Mas estes cursos existem, e os artistas formados por instituições de ensino também. O ruir dos sonhos só acontece quando são despejados da etapa formativa para um mercado de trabalho “muito empresarial, muito virado para as ciências exatas”, com pouco mais do que um diploma nas mãos. A culpa não é sua, insiste. Seguiu passo a passo a receita para o sucesso: definiu um sonho e investiu tempo e dinheiro para lá chegar, sem saber que o caminho lhe estava vedado à partida.

Porque é que continuamos a insistir que toda a gente pode tirar o curso com que sempre sonhou, se afinal isso não vale nada?”, Raquel Santos

Para António, nascido numa geração diferente, arranjar emprego após o ensino secundário foi a etapa mais fácil de toda a carreia que se sucedeu.

Tentou entrar no curso de Filosofia, “mas a média era mais elevada do que atualmente” e foi condicionado por apenas uma décima. Sem problema: as oportunidades de emprego sucediam-se e experimentou vários ramos, aqui e ali, até se estabelecer na área de distribuição de filmes.

Sabia de cor as obras de Kusturica, Kurosawa e Gordard e conciliou o agradável – o interesse enquanto cinéfilo – com o “incrivelmente lucrativo”: uma oportunidade profissional que foi “um autêntico boom nos anos 80”, década das permanentes, das cassetes Betamax e dos clubes de vídeo. O difícil não foi encontrar trabalho; foi dedicar-lhe a sua vida e vê-lo esmorecer à medida que a tecnologia o ditava obsoleto.

O aparecimento do DVD foi um augúrio do que ainda estava por vir. Os laboratórios de vídeo esforçavam-se, na medida do possível, por acompanhar o desenvolvimento tecnológico cada vez mais célere. Os projecionistas de cinema e bobines ficaram reservados para os filmes antigos e viram-se substituídos por “drives do tamanho de um maço de tabaco”. Em vez do aluguer em clubes de vídeo, passou a investir-se num mercado de venda direta ao público – agora praticamente desaparecido e reservado a colecionadores. Nos últimos anos de trabalho, “até as campanhas ao euro já não vendiam nas grandes superfícies. Vinha tudo devolvido, e ficava nos armazéns aos montes”.

António folheia o jornal enquanto fala, sublinhando distraidamente as frases mesmo sem as ler, com o olhar absorto entre manchetes e fotografias. “O mercado de venda deixou de ser rentável, muito devido à internet. Surgiu a pirataria, uma série de plataformas em que as pessoas podem ver os filmes gratuitamente, e muitas editoras acabaram por despedir os colaboradores e fechar portas”. Vira uma página e alisa o papel com a mão. “Foi o meu caso”.

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